terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Episódios da minha praxe: uma aula aos caloiros

E porque o prometido é devido, cá estou eu a procurar dar um modesto contributo para a compreensão da praxe em que fui educado.
Corria o ano de 1988 e Coimbra recebia mais uma fornada de jovens caloiros, ávidos por muito aprenderem na vetusta Universidade que D. Dinis fundou na romântica Lusa Atenas, em finais do Século XIII.
E porque todos os contributos eram sempre poucos para valorizar o conhecimento dos jovens estudantes, a precisarem de justificar lá em casa a pesada mesada que todos os meses pai e mãe pagavam aos incumbentes universitários, lá fui eu dar uma aula de Álgebra Linear a caloiros de matemática e de Engenharia Geográfica.
Vesti a roupa menos coçada da parca indumentária do meu tempo de estudante, e pedi por empréstimo uma gravata de cor única e uma pasta com um aspecto razoável, que pudesse dar maior credibilidade ao meu "grave" semblante de Professor Universitário.
Antes da dita aula lá fui solicitar autorização, como me competia, ao verdadeiro Professor da cadeira, o saudoso Professor José Vitória, meu companheiro na Assembleia de Representantes da FCTUC (para os que não conhecem a sigla FCTUC, estamos a falar da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra).
Chegada a hora certa da dita aula, deixei correr alguns minutos, poucos, para que os novos e insaciáveis estudantes de Álgebra Linear se pudessem acomodar no grande anfiteatro das matemáticas, com capacidade superior a 200 alunos.
Entrei de rompante com ar sério e determinado dando os bons dias aos jovens caloiros que se preparavam para iniciar o seu contacto com mais uma importante cadeira do seu curso universitário. A sala estava cheia e, aqui e ali, espalhados pela assistência, alguns dos meus colegas e amigos que não quiseram perder  mais uma oportunidade de gozarem a sua já longa e "pesada" vida universitária.
Comecei por apresentar o programa da cadeira, em que enchi várias vezes os famosos quadros de subir e descer do dito anfiteatro. Pelos lados da assistência o clima começava a ficar pesado: meu Deus, quanto matéria numa cadeira só! Como é que a malta ia conseguir estudar aquilo tudo...
Para serenar os ânimos, sempre fui dizendo que não se preocupassem com a dimensão do programa pois a cadeira dispunha de excelentes sebentas e de óptimos livros de suporte, em alemão pois claro!
Devo confessar que ainda hoje guardo a cara de pasmo e de incredulidade daqueles caloiros, sobretudo aqueles que me estavam mais próximos nas primeiras filas! Imaginaram-se 10 anos para acabar o curso! Era preciso ajudá-los a ganhar confiança e, de imediato, tranquilizei-os anunciando que o alemão não era um problema, pois a nossa biblioteca das matemáticas dispunha de excelentes traduções em russo, aproveitando para explicar que os russos sempre foram, o que é verdade, dos melhores matemáticos do mundo.
Do pasmo inicial, a face dos caloiros passou a transmitir autêntico terror, sentindo-se um silêncio gelado na sala, aqui e ali quebrado com cuidado pelos penetras atrás identificados, que mais não faziam ali do que gozarem mais aquele momento de puro gáudio académico!
A verdade é que a coisa me correu bem, e consegui dar aquela fantástica aula, de que guardo memórias sem preço, sem pestanejar nem quebrar por um segundo o ar de gravidade que carreguei no momento em que entrei naquela sala. Por último, e para compor o ramalhete, apresentei o Professor José Vitória como meu assistente, que iria dar também as minhas aulas, sendo que eu estaria sempre disponível para o esclarecimento de quaisquer dúvidas, no meu gabinete das matemáticas.
Foi com um anfiteatro em profundo silêncio que agradeci a atenção de todos e desejei boa sorte no curso que ali iniciavam. Os penetras "doutores" e amigos mordiam como podiam os lábios para se aguentarem e não estragarem aquele árduo e difícil trabalho que tínhamos acabado de realizar!
Deixei a sala e vim para a porta das matemáticas descomprimir daquele momento único que tinha acabado de viver e ajudado a viver.
Cerca de um mês depois, vou por acaso às matemáticas e entro num dos elevadores do edifício. Entram no mesmo elevador 3 caloiras que faziam parte da fila da frente da famosa aula de Álgebra Linear. Pensei que iriam soltar aquele sorriso próprio de quem foi enganado na sua qualidade de caloiro, mas enganei-me redondamente. Uma das caloiras mais expansiva virou-se para mim e perguntou-me com ar sério: "Professor nós gostaríamos de esclarecer algumas dúvidas consigo, quando é que o poderíamos fazer?" Devo confessar que fiquei atónito, o grande Professor José Vitória não me tinha desmascarado, assumindo sempre ser meu assistente da cadeira de Álgebra Linear. Que grande praxadela que ele me deu! A verdade é que também não me desmanchei e lá fui dizendo de forma assertiva que poderiam visitar-me no meu gabinete às 5ªs da parte da tarde!
Vinte e seis anos depois retenho na minha memória minutos inteiros daquela aula que não troco por dinheiro algum deste mundo, e estou convencido que aqueles caloiros guardarão para sempre boas memórias da praxadela que levaram num dos dias inesquecíveis em que iniciavam a sua vida universitária em Coimbra.

Saudações académicas

António Ribeiro
(http://vozesdalusitania.blogspot.com)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A praxe - parte II


Conforme tive oportunidade de referir há poucos dias atrás, a propósito deste tema, assistimos a um ataque sem regras à praxe académica.

Os adversários da praxe, que partem para este debate com preconceitos ideológicos manifestos, cavalgam a galope a tragédia do Meco para procurarem erradicar a Praxe das academias.

Uma das últimas declarações que pude ler é da autoria do Professor Mariano Gago, em que refere que "as praxes educam para o fascismo e devem ser proibidas".

Há coisas que não se percebem por mera aprendizagem livresca, por mais brilhante que seja o aluno, têm de ser vividas!

Com efeito, esta ladainha que a praxe educa para o fascismo é tão bafienta que já não se suporta! A praxe em Coimbra sempre educou para a fraternidade e solidariedade, mas isto só vivendo é que se percebe!

Espanta-me que quem só viu isto de fora se monte em cima da burra, rape do melhor catecismo anti-praxista, faça uma pose intelectual e pretensamente esclarecida e malhe na praxe sem nunca a ter vivido nem percebido!

Alguma humildade ficaria bem, pelo que se recomenda alguma informação e esclarecimento sobre aquilo que é a verdadeira praxe, e que não é seguramente o folclore acéfalo que vamos vendo por aí.

Já me decidi, vou dar o meu contributo nesta matéria. Vou procurar arranjar algum tempo para escrever alguns episódios do que foi a minha praxe. Espero que isto possa ajudar, de alguma maneira, ao debate e ao esclarecimento.

As mortes na praia do Meco e a praxe académica


A morte de seis estudantes universitários da Lusófona no Meco foi motivo de natural consternação para todos nós. Seis jovens vidas ceifadas tão cedo e de forma completamente estúpida.
Embora estejam por apurar as causas deste desastre, rumores vários apontam no sentido de as mortes poderem estar ligadas a rituais de praxe académica.
A confirmarem-se estas suspeitas estaremos perante uma situação de enorme gravidade, a merecer uma intervenção imediata e consequente das autoridades civis e académicas.
Sem prejuízo do exposto, assisto com preocupação cívica a um ataque sem regras, e sem balizas, à praxe académica em sí mesma, como se esta pudesse ser adjectivada de forma absoluta e em sentido único.
Obviamente que não: a praxe académica não poderá significar nunca a humilhação de ninguém e, muito menos, colocar em causa a integridade física de quem quer que seja.
Bem pelo contrário, a praxe académica foi sempre uma das formas mais eficazes e felizes de proceder à integração dos ditos novatos dentro do espírito do grupo, partilhando valores, costumes e boas práticas de sã convivência.
Dito isto, repudio naturalmente todos aqueles que a coberto da dita praxe desenvolvem práticas canhestras e acéfalas no tratamento dos ditos caloiros, muitas vezes reveladoras de meras frustrações pessoais, da mesma forma que contesto de forma veemente aqueles que por mero preconceito ideológico, aproveitam a boleia de situações alegadamente associadas a falsa praxe académica, para a partir daqui a atacarem, denegrindo todos aqueles que sempre fizeram da praxe o ponto de encontro da amizade e fraternidade académicas.
Infelizmente há por aí quem nunca tenha percebido isto; eu julgo ter pertencido ao grupo daqueles que praxando e sendo praxados sempre descobriram uma forma sadia de fazerem amigos e cultivarem lealdades para a vida. Sinceramente, acho que tive mais sorte!


Saudações académicas